Glosas sobre um êxtase de alta contemplação
(Ávila 1572-1577 ?)
Entrei onde não soube
e quedei-me não sabendo
toda a ciência transcendendo.
Eu não soube onde entrava,
porém, quando me vi,
sem saber onde estava,
grandes coisas entendi;
não direi o que senti,
que me quedei não sabendo,
toda a ciência transcendendo.
De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda soledade
entendida (via reta);
era coisa tão secreta,
que fiquei como gemendo,
toda a ciência transcendendo.
Estava tão embevecido,
tão absorto e alheado,
que se quedou meu sentido
de todo o sentir privado,
e o espírito dotado
de um entender não entendendo,
toda a ciência transcendendo.
O que ali chega deveras
de si mesmo desfalece;
quanto mais sabia primeiro
muito baixo lhe parece,
e seu saber tanto cresce,
que se queda não sabendo,
toda a ciência transcendendo.
Quanto mais alto se sobe,
tanto menos se entendia,
como a nuvem tenebrosa
que na noite esclarecia;
por isso quem a sabia
fica sempre não sabendo,
toda a ciência transcendendo.
Este saber não sabendo
é de tão alto poder,
que os sábios discorrendo
jamais o podem vencer,
que não chega o seu saber
a não entender entendendo,
toda a ciência transcendendo.
E é de tão alta excelência
aquele sumo saber,
que não há arte ou ciência
que o possam apreender;
quem se soubera vencer
com um não saber sabendo,
irá sempre transcendendo.
E se o quiserdes ouvir,
consiste esta suma ciência
em um subido sentir
da divinal Essência;
é obra da sua clemência
fazer quedar não entendendo,
toda a ciência transcendendo.
São João da Cruz
Fonte: Obras Completas do Doutor Místico São João da Cruz. Coimbra, 1977.