Resenha do escrito de Santa Edith Stein
Caminhos do conhecimento de Deus
A “Teologia Simbólica” do Areopagita e seus pressupostos objetivos
Frei Washington Barbosa, OCD
Wege der Gottserkenntis. Die “Symbolische Theologie” des Areopagiten und ihre sachliche Voraussetzungen (Caminhos do conhecimento de Deus. A “Teologia Simbólica” do Areopagita e seus pressupostos) foi escrito pela pensadora carmelita Santa Edith Stein em 1941. O texto original, datilografado e contendo 49 páginas, foi pretensamente escrito pela autora alemã para ser lançado na revista americana Journal of Philosophy and Phenomenological Research; contudo, a própria Edith Stein o percebeu inadequado para uma revista de filosofia fenomenológica (STEIN, 2002a, Carta 648). Entretanto, por causa da II Guerra Mundial e das perseguições nazistas, o texto só foi editado no post mortem da autora, em fevereiro de 1946, na revista holandesa Tijdschrift voor Philosophie; e, também, na revista norte americana The Thomist no mesmo ano; posteriormente, em 1979, foi editado em Münich. Das edições críticas alemãs atuais, surgiram Edith Steins Werke XV (1993) e Edith Stein Gesamtausgabe (ESGA 17) (2003) (FERMÍN; URKIZA, 2004). Atualmente, o artigo poderá ser encontrado com tradução nas línguas modernas; como a utilizada na presente recensão, em língua espanhola, conforme consta nas referências bibliográficas.
A proposta de Edith Stein era apresentar, em seu artigo, a partir da “Teologia Simbólica” do Pseudo-Dionísio Areopagita (a autora, mesmo tendo clareza do pseudônimo apontado pela crítica moderna desse renomado Padre do V século Cristão, nomeia-o Dionísio, Dionísio Areopagita, Areopagita em seu escrito; a presente resenha seguirá tal prática, mantendo sua fluidez textual), uma reflexão sobre os vários caminhos pelos quais o ser humano poderia conhecer a Deus. Apesar de ser um tema teológico, Edith Stein realiza sua reflexão na perspectiva filosófico-fenomenológica: a razão humana, sendo capaz e com potencialidades, desenvolve-se obtendo uma consciência sobre Deus; no entanto tal racionalidade, por si só, não adentra ao Mistério divino por completo; por isso, necessitará da fé como fonte possível de uma linguagem figurativa, e poderá experimentar a Presença Divina numa outra forma de conhecimento, na mística (ALES BELLO, 2014, p.106; STEIN, 2004, p.146).
Na realidade, Santa Edith teve não pouco trabalho na confecção de seu texto, pois precisou juntar os dados da Teologia simbólica nas obras do autor; sempre, desde sua tenra idade, sentiu-se desafiada a propostas desse nível, sinal claro de sua busca pela verdade. Além disso, preocupava-se em facilitar o entendimento de seus leitores modernos quanto à leitura de textos difíceis, assim como igualmente realizou na tradução e organização para a língua alemã do De Veritate de Santo Tomás de Aquino, para atender aos sinais dos tempos com um olhar teológico nos acontecimentos da história (AZCUY, 1999, p. 80; GÓMEZ, 2018, p. 04). Caminhos do conhecimento de Deus, dividido em duas partes pela autora, a) As considerações preliminares e b) A Teologia Simbólica, apresenta-se original como se verá na sequência.
A primeira parte de seu texto, servindo de introdução à Teologia Simbólica, está subdividido em três seções nas quais Edith Stein apresenta ao autor do Corpus Dionysianus, a sua ontologia e teologia, assim como os graus de sua teologia. Na primeira seção, com objetividade, clareza e domínio, a autora identifica a influência do Areopagita como a de importantes personagens no Ocidente: Aristóteles, Santo Agostinho e Tomás de Aquino. Outrossim, apresenta o Corpus do Areopagita: De Coelesti Hierarchia (Sobre a Hierarquia Celeste), De Divinis Nominibus (Sobre os Nomes Divinos), De Ecclesiastica Hierarchia (Sobre a Hierarquia Eclesiástica), De Mystica Theologia (Sobre a Teologia mística); e um epistolário composto por dez cartas. Nas segundas e terceiras seções, com sua capacidade sintética, a autora apresenta a ordem do conhecer do autor onde “da luz inacessível, que mediante seu brilho deslumbrante mantém o Ser Supremo encoberto às criaturas, [e] surge um raio compreensível” (STEIN, 2004, p. 129) capaz de descender às ordens angélicas até aos homens, porque todos mensageiros de Deus. Na última seção dessa parte, aponta as “teologias” Afirmativa, Negativa, Simbólica e Mística de Dionísio e seu modo de ver as Sagradas Escrituras como teologia; e os autores bíblicos, como os que levam tal mensagem a frente, como teólogos. Contudo, iguais teologias e seus diversos graus não são disciplinas, mas os modos do falar de Deus, as formas ou os caminhos distintos do conhecimento de Deus (STEIN, 2004, p. 131).
A segunda parte de Caminhos do conhecimento de Deus está subdividida em várias seções às quais levarão ao leitor a uma visão ampla sobre o tema. Na primeira seção, a autora explica a Teologia Simbólica como sendo um grau inferior à Teologia Afirmativa, seu degrau ou porta. Foi da carta do Areopagita a Tito, como suposto discípulo de São Paulo nessa carta, e do capítulo XV da obra Sobre a Hierarquia Celeste, que Edith Stein retirou o material para a construção desta seção. Dionísio Areopagita, para nomear o Divino, serviu-se de várias imagens bíblicas; e, seguindo o programa comumente utilizado na época, ora ocultava as verdades àqueles que não eram seus discípulos ora comunicava as verdades aos iniciados nesta sua teologia. Nas duas próximas seções, Edith Stein terá como foco o significado de “imagem” para poder explicar o que seja “símbolo”.
Explicando as “imagens”, no texto do Areopagita, Santa Edith remete ao significado imediato e mediato dos nomes simbólicos; conceitos que ainda reaparecerão ao final de seu opúsculo. O discurso simbólico, com suas expressões do domínio da experiência externa ou interna ao ser humano, é explicado por Edith Stein para compreender a razão de ser, o centro unificador e dominante da Teologia Simbólica: Deus mesmo. A pensadora toma as palavras “símbolo” e “imagem” aplicando-as aos conceitos de “forma” e “figura”, e conclui: a) a imagem é algo elaborado, formado ou configurado como faz um artista em sua obra; b) ela existe em consequência de uma conformação com a apreensão imediata; e c) refere-se a Deus (o modelo) e à sua atuação, ou como a cópia a seu original (STEIN, 2004, p. 139-141). Daqui por diante, a autora adentrará nas relações entre o que seja uma imagem com os pressupostos do locutor e do ouvinte da mensagem. Santa Edith Stein utilizando as ciências modernas de sua época ao aprofundar o tema, ultrapassou ao discurso areopagita: a filologia, a linguística e a teologia alemãs são entrelaçadas por ela, seguindo o conselho do jesuíta Johannes Hirschmann, para aprimorar o seu conteúdo (Hirschmann, em sua Carta 236, aponta uma série de obras e autores da época que serviriam de base para Edith Stein escrever seu artigo: Teologia do conhecimento de Deus, de Hans Urs von Balthasar; Analogia Entis, de Erich Przywara; e Ouvinte da Palavra, de Karl Rahner). Dessa modo, o teólogo e amigo de Edith Stein apontou-lhe melhoramentos aos conceitos de alguns temas teológicos como inspiração, razão natural ou conhecimento natural e fé na Carta 242.
O Conhecimento natural de Deus. Por meio da Teologia natural – doutrina deduzida a partir da experiência natural por meio da razão natural, cujo conteúdo principal são as provas da existência de Deus e seus atributos provenientes do mundo criado –, explica o conhecer humano a partir de um pensar conceitual e de um procedimento científico, com fundamento na intuição. Atesta Edith Stein que tal fundamento, em sentido mais amplo, tem por inclusão a intuição sensível e a espiritual. A criação, “é o fundamento intuitivo aos argumentos da teologia natural. Também um possível fundamento intuitivo à linguagem simbólica, para a criação de palavras, e ao mesmo tempo, à compreensão da ‘teologia simbólica’” (STEIN, 2004, p. 144). Em outras palavras, o conhecimento natural é aquela consciência intelectual humana capaz de perceber, a partir do mundo natural, os “símbolos santos” da teologia areopagítica, como primeiro nível do conhecimento divino.
A Fé. Todos os teólogos, em sentido dado pelo Areopagita, se apoiam no solo da fé (STEIN, 2004, p. 145). O sentido dessa fé, segundo Stein, não é no sentido amplo de creditus, mas no sentido estrito de fides – aceitação e fidelidade à revelação sobrenatural. Existe uma seção dedicada ao tema fé, na obra steiniana Natur, Freiheit, Gnade – Natureza, liberdade e graça de 1932. Ali, aprofundam-se as categorias de fé: Belief como convicção e opinião (doxa) (com sentido extrareligioso); e fides (o ato religioso fundamental) (STEIN, 2002b, p. 102-113). A fé, em si e por si, isto é, independente de iluminações extraordinárias, é a fonte possível da linguagem figurativa da Teologia Simbólica; ainda que existam diferentes formas de entender e conhecer a Deus na fé. Ela é ponte na travessia entre o conhecimento natural e o conhecimento ou experiência sobrenatural (STEIN, 2004, p. 151, 153).
A Experiência sobrenatural. A fé, como aceitação à Palavra de Deus anunciada, aponta a algo distinto; se antes existia a necessidade do anúncio dos “símbolos santos” através de seus mensageiros, um grau a mais do conhecimento divino é dado agora. Àquele que disse “sim” à Palavra divina tem a certeza interior de que Deus lhe fala; tal segurança apoia-se no “sentimento” da presença de Deus em seu interior, denominado por Edith Stein de experiência de Deus – núcleo de toda a vivência mística ou encontro pessoal com Deus (STEIN, 2004, p. 148). Por fim, Edith Stein complementará ao tema, utilizando alguns conceitos fenomenológicos ao tratar da experiência imediata e mediata nas três últimas seções.
Edith Stein utilizou os conceitos de imediato e mediato como parâmetro dos temas noético e hylético da fenomenologia de Edmund Husserl (tais temas, a noese e a hylese, podem ser aprofundados no livro filosófico da professora italiana Angela Ales Bello, Introdução à fenomenologia de edição brasileira). O primeiro conceito diz respeito ao subjetivo humano, àquilo pelo qual sente, de como apreende e interpreta o dado objetivo em seu interior; em seu Tratado, Edith Stein diz do preenchimento imediato de Deus ao existir humano a partir de sua experiência interior. O segundo conceito diz de todo o dado objetivo ao ser humano em seu exterior, e se manifesta à consciência; e, em seu texto, dos dados de fé e dos símbolos da Sagrada Escritura oferecidos ao ser humano como materiais à sua experiência pessoal com o divino (ALES BELLO, 2014, p. 107-108).
Nas duas últimas seções de Wege der Gottserkenntis, Edith Stein questiona qual é o sentido da afirmação dionisiana de que Deus “oculta o que é santo ao olhar profano da multidão” (AREOPAGITA, 1995, p. 231); e, a partir dessa resposta, apresenta os graus do encobrimento e do descobrimento na Teologia Simbólica, arrematando o seu artigo.
A falta de entendimento de alguns aos símbolos Divinos não provém da inacessibilidade divina, mas à falta de interpretação ou compreensão da Teologia Simbólica; pois Deus sempre se aproxima do ser humano, seja pela revelação natural seja pela revelação sobrenatural. Tal incapacidade se deve: a) às referências do mundo atual carente de evidências mais claras ao tema; b) à falta de um sentido religioso; c) à falta de disposições naturais a tal entendimento. Tomando esse último ponto, esclarece que, se muitas pessoas são incapazes de recrear-se através de um discurso metafórico humano por inabilidade, também terão dificuldades com metáforas sobre Deus. Infelizmente, Stein interrompe essa sua reflexão por motivos adversos naquele ínterim (STEIN, 2004, p. 154-159). O Tratado é concluído por Santa Edith Stein ao afirmar a existência de uma multiplicidade de símbolos condicionados a uma gradualidade na Teologia Simbólica, a qual conduz ao conhecimento divino. Também afirma que Deus fala ao ser humano de vários modos, porque Teólogo simbólico; e comunica-se através da natureza, da experiência pessoal, e dos rastros humanos na história.
Talvez a perplexidade possa apresentar-se àquele que tem acesso ao breve artigo Caminhos do conhecimento de Deus de Santa Edith Stein, por superar o aparente tema da espiritualidade. A autora cumpriu o prometido na epígrafe de seu trabalho: a partir da Teologia Simbólica do Pseudo-Dionísio Areopagita, apontou os vários caminhos de acesso à experiência ao Divino pelo ser humano. Outrossim, aponta os pressupostos da linguagem simbólica ou metafórica referentes à linguagem bíblica, na Teologia Simbólica areopagita, reclamada tantas vezes por muitos como obscura. O cenário fenomenológico das pesquisas steinianas não excluiu à regra o seu opúsculo. Assim sendo, parece que Edith Stein equivocou-se em pensar seu artigo inapto àquela revista de filosofia fenomenológica para a qual escrevera inicialmente. Wege der Gottserkenntis não é apenas uma teorização, muito bem feita por sinal, do tema conhecimento de Deus; mas exprime a experiência da autora em busca incessante pela verdade. O breve artigo, penúltimo trabalho da santa antes de ser ceifada nos campos de concentração em Auschwitz-Birkenal em 1942, retrata seu próprio percurso de conhecimento intelectual, de fé, e de experiência pessoal com Deus. Conhecimento coroado, ao final, com uma sabedoria menosprezada por muitos que titula sua última obra, a Scientia Crucis.
Referências bibliográficas
AREOPAGITA, Dionísio. Obras completas del Pseudo Dionisio Areopagita. 2. ed. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1995.
AZCUY, Virginia Raquel. Una teología epifánica, eficaz y discreta: diálogo entre Edith Stein y la teología contemporanea. Rivista Teresianum, Roma, Ano L, nº I-II, gennaio – dicembre/1999.
ALES BELLO, Angela. Il senso del sacro: Dall’arcaicità ala desacralizzazione. Roma: Castelvecchi, 2014.
FERMÍN, Francisco Javier Sancho; URKIZA, Julen. Nota introductoria. In: STEIN, Edith. Obras completas V: Escritos espirituales (En el Carmelo Teresiano: 1933 – 1942). Burgos: Ediciones el Carmen; Editorial de Espiritualidad; Editorial Monte Carmelo, 2004. p. 123-125.
GÓMEZ, Miriam Ramos. Edith Stein y el “De veritate” de Tomás de Aquino: prólogo, resúmenes, introducciones y comentarios de Edith Stein a la obra del Aquinate; introducción y texto bilingüe alemán-español. EUA: International Academy of Philosophy Press, 2018.
HIRSCHMANN, Johannes. Carta 236 dirigida a Edith Stein, de 30 de abril de 1941. In: STEIN, Edith. Obras completas I: Escritos autobiográficos y cartas. Burgos: Ediciones el Carmen; Editorial de Espiritualidad; Editorial Monte Carmelo, 2002. p. 1417-1656.
STEIN, Edith. Caminos del conocimiento de Dios. La “Teología simbólica” del Areopagita y sus presupuestos objetivos. In: STEIN, Edith. Obras completas V: Escritos espirituales (En el Carmelo Teresiano: 1933 – 1942). Burgos: Ediciones el Carmen; Editorial de Espiritualidad; Editorial Monte Carmelo, 2004. p. 125-181.
STEIN, Edith. Carta 648 dirigida a Marvin Farber. In: STEIN, Edith. Obras completas I: Escritos autobiográficos y cartas. Burgos: Ediciones el Carmen; Editorial de Espiritualidad; Editorial Monte Carmelo, 2002a. p. 527 -1413.
STEIN, E. La struttura ontica della persona. In: STEIN, E. Natura, persona, mistica. Per una ricerca Cristiana della verità. Roma: Città Nuova, 2002b. p. 49-113.