São João da Cruz – 14 de dezembro

Glosas sobre um êxtase de alta contemplação

(Ávila 1572-1577 ?)

Entrei onde não soube
e quedei-me não sabendo
toda a ciência transcendendo.

Eu não soube onde entrava,
porém, quando me vi,
sem saber onde estava,
grandes coisas entendi;
não direi o que senti,
que me quedei não sabendo,
toda a ciência transcendendo.

De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda soledade
entendida (via reta);
era coisa tão secreta,
que fiquei como gemendo,
toda a ciência transcendendo.

Estava tão embevecido,
tão absorto e alheado,
que se quedou meu sentido
de todo o sentir privado,
e o espírito dotado
de um entender não entendendo,
toda a ciência transcendendo.

O que ali chega deveras
de si mesmo desfalece;
quanto mais sabia primeiro
muito baixo lhe parece,
e seu saber tanto cresce,
que se queda não sabendo,
toda a ciência transcendendo.

Quanto mais alto se sobe,
tanto menos se entendia,
como a nuvem tenebrosa
que na noite esclarecia;
por isso quem a sabia
fica sempre não sabendo,
toda a ciência transcendendo.

Este saber não sabendo
é de tão alto poder,
que os sábios discorrendo
jamais o podem vencer,
que não chega o seu saber
a não entender entendendo,
toda a ciência transcendendo.

E é de tão alta excelência
aquele sumo saber,
que não há arte ou ciência
que o possam apreender;
quem se soubera vencer
com um não saber sabendo,
irá sempre transcendendo.

E se o quiserdes ouvir,
consiste esta suma ciência
em um subido sentir
da divinal Essência;
é obra da sua clemência
fazer quedar não entendendo,
toda a ciência transcendendo.

São João da Cruz


Fonte: Obras Completas do Doutor Místico São João da Cruz. Coimbra, 1977.

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