Do barro nascida
A história que vou contar tem cara de lenda, jeito de lenda, cheiro de lenda, cores de lenda, textura de lenda, mas não é lenda. Vocês logo vão compreender do que estou falando. Talvez esta seja uma das histórias mais verdadeiras que já se tenha contado. E ouvido. E lido. Plantou-se no meu, no teu coração. No do padeiro. Do fofoqueiro. Do cientista. Do filósofo. Do artista. Do autista. Do sábio. Do pedreiro. Do financista. Da beata. Do crente. Do descrente. Do motoqueiro. Da baladeira. Da cozinheira. Da socialite. Do papa. Do indigente. De toda a gente. E bate como um coração implantado no Vale do Paraíba. Coração que não pertence a este ou aquele. Coração verde-amarelo-azul-e-branco. Coração vestido de manto estrelado. Cruzeiro do Sul. Céu azul. Brasil.
Quando ela nasceu, ninguém se deu conta. Foi bem aos pouquinhos. Um toque daqui, um retoque dali. De terra(-cota) de Santana de Parnaíba, berço bandeirante, ela foi sendo gestada, esculpida. Não veio de ovo nem de óvulo nem de útero. Nunca sugou um seio. Não teve nem pai nem mãe. Foi sendo talhada a partir do sonho de artesãos pobres – um tal de Pedro, talvez um Zé, talvez um Chico. Coletivamente, impessoalmente, estes homens sem rosto nem sobrenome foram dando forma a seu primeiro sonho feito de argila.
E assim ela veio ao mundo. Não se sabe quando. Nem se soube jamais de sua vida – se é que a viveu. Só se sabe que ela adquiriu um formato triangular, espécie de útero de cabeça para baixo, nostalgia de líquido amniótico e de aconchego materno. No vértice, estava precisa e ironicamente sua cabeça – pequena e negra. Como a noite em que nasceu. E que a envolveu no mesmo anonimato a que ela estava condenada pelo resto da “vida”… Estranhamente, já chegou ao mundo, vestida. Envolta num manto tão escuro como aquilo que não se vê, mas cravejado de continhas luminosas. Seu destino paradoxal estava traçado. Sobre algo assim inevitável, teria dito alguém há muitos séculos: “Alea jacta est”.
{Gepeto ousou pedir vida para seu Pinóquio. Pigmaleão imprimiu o sopro de vida em sua Galateia, graças aos favores de Afrodite. Michelangelo feriu seu belo Moisés, ordenando-lhe: “Parla!” Obedientemente, porém, os artesãos que criaram a estranha forma (feminina) que nascia acataram a determinação do Deus Supremo: A mulher-estátua permaneceria, em vida, inanimada, desvitalizada, mero produto das artes dos homens. Nada de hybris. Moderação [A Sabedoria dos gregos na alma – a tal da psyché ou da anima(?) – daquele gente que nem suspeitava dos poderes da razão e da mente. “Sou caipira Pirapora…” – admitiria cada um deles humildemente (conforme testemunharia o compositor Renato Teixeira anos mais tarde)]}.
E por falar em testemunhar, muitos deram testemunho sobre coisas raras que se passavam em todos os lugares por onde ela transitava – ou antes, para onde era levada. Velas se apagavam e acendiam, brusca e alternadamente. Chuvas de estrelas cadentes e fogos fátuos riscavam o céu. Crianças febris se curavam e voltavam, animadas, a seus jogos e brincadeiras. Brincos de ouro há muito perdidos eram encontrados. Alianças de casamento, recuperadas. Matrimônios destroçados, refeitos. Peitos murchos passavam a verter leite e mel. O perfume de rosas em torno da imagem inundava os lugares, os lares, os altares. E enchia os pulmões e a alma – pneuma e anima – de homens e mulheres, velhos e crianças .
Ainda assim, poucos atribuíam valor a estes fatos insólitos. Entretidos com os dramas da TV, escravizados pelos deveres diários, hipnotizados pelo sucesso, pela riqueza, pelo poder que vislumbravam ao fim do túnel (“At the end of the rainbow, there is a pot of gold.”), seguiam dia após dia, adorando seus bezerros de ouro, prata e diamantes. Enquanto isso, as rosas murchavam. E o perfume tentava, em vão, cavar seu caminho pelas narinas entumecidas por uma (in)sensibilidade materialista e profana.
Foi por isso, talvez, que ninguém notou seu sumiço. Nenhum historiador, pesquisador ou doutor conseguiu qualquer depoimento nem encontrou vestígios da trajetória da triangular Criatura – templo da Trindade Santa — que habitara entre homens privilegiados os quais a desprezavam, assim como Pedro negara conhecer o Cristo. Só se sabe que (e disso muitos dão fé) um dia, uma região distante daquela onde nascera a geométrica imagem (o Vale do Paraíba, de que falei no início) recebeu a ilustre visita do governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro.
Os pescadores da região se alvoroçaram, buscando os melhores peixes para um lauto banquete. E lançaram suas redes por todo o Rio Paraíba do Sul. Como os apóstolos anos antes, não encontraram nada. Não perdendo a fé, Domingos, Felipe e João obedeceram a uma Ordem Superior vinda dos céus. Seus corações se encheram de pressentimento. Foi então que pescaram a base do triângulo, manto que iluminou a noite e encheu o vale de luz e de magia. Ardendo em paixão e agradecendo aos céus e à lua cheia pelo corpo da estranha Sereia (cujas escamas eram pedras com jeito de preciosas) cederam a um impulso mais forte que qualquer propósito ou razão: Lançaram de novo sua rede. E nela fisgaram a morena cabeça, ornada com três pérolas – estrelas que, com as Três Marias, cintilaram na escuridão que antes parecia abraçar a terra inteira. Um inexplicável perfume de rosas, tão denso que se deixava tocar em aveludadas pétalas, tingia a escura noite de rosa, branco e púrpura. A luz crescia, ofuscava, amanhecia. E atraía, como a mariposas, cardumes de peixes, vindos de todos os deltas, rios e pororocas do mundo. Como Pedro, os pescadores, assustados diante de tal abundância, exclamaram: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador”.
Jamais alguém pôde se esquecer deste novo milagre dos peixes, guardado nas tradições do Brasil, e em evangelhos apócrifos ocultos em alguma das muitas cavernas deste divino e humano planeta. (Elis Regina cantou mais tarde, em reverente celebração: “Nunca, jamais se viu tanto peixe assim!”) E o banquete que seria oferecido às autoridades portuguesas se transmutou na Páscoa dos pequenos e oprimidos, consolação dos aflitos, unguento dos feridos, alívio dos enfermos. Todos os excluídos exclamaram em uníssono: “Aparecida!” O Batismo e (re)nascimento da figura de terracota como Mãe de Cristo, Conceição Aparecida, em carne, osso e espírito se irradiou pelos quatro pontos cardeais. Ecoou nos desígnios de inúmeras crianças (“Deixai vir a mim os pequeninos”) – hoje mulheres feitas: uma infinidade de Aparecidas, Marias Aparecidas, Cidas e Cidinhas apareceram, bem aparecidas, por toda a parte. (Não posso excluir do rol de privilegiadas, minha amiga Magali Aparecida de M. Duignan que, do Brasil, mudou-se para os EUA, levando para lá, em seu nome, os vestígios indeléveis do milagre.) Finalmente a escultura-mulher anônima ganhara uma identidade única e plural, inscrita na alma de cada representante do povo brasileiro.
E assim termina (e continua) esta lenda, vivenciada ainda hoje na pele de gente feita de carne e osso. (E dela dou testemunho e fé.) Lenda que fez História. Trajetória de treva e luz. Rota traçada em ecos fônicos, paronomásia, poesia: De Parnaíba ao Paraíba. “Sem pecado, concebida. Oh! Senhora Aparecida!” Do barro nascida. Como todos nós.
Sílvia Simone Anspach
Pseudônimo: Terra Brasilis – Prêmio Destaque – Concurso internacional de lendas e poesia – Mulheres Emergentes – Editoras Alternativas de Minas Gerais